neste diário não deixo os factos, deixo os relatos:
vou-me na epifania
deixo a maresia
vou nas palavras
deixo as amarras
vou-me no sono
deixo o tomo
vou-me vazia
deixo a Sofia
vou-me na Ângela
não rimo com nada
tanto tempo a tentar esquecer
dei por mim a não lembrar mais
a achar que não tinha por nada
o que o dado esquecido teve
nas gavetas da prateleira
primeira divisão da esquadra
direita da escrivaninha ABC
não tinha nada
encontrei algo
quando se encontra algo é
como montar as cavalitas do avô
como usar saias brancas de pintas vermelhas
como ir aos repuxos de água do jardim bebendo sôfregos
como lembrar os romances esquecidos da bonecas de trapos
como lembrar as brincadeiras de neve e as dos comboios esmagando moedas
lançando foguetes em carris
é como lembrar isto tudo
se esta fosse a exacta verdade
que
se esta fora então
teria de dizer que é como
lembrar o avô louco de Alzheimer
senhor alemão que fugiu do hospício pinhal afora
e a avó partindo lhe a cadeira na cabeça
seria lembrar perder as pernas nas brincadeiras estúpidas
fugindo dos comboios em pontes metálicas
seria como lembrar as amigas e amigos
com quem nunca mais queremos falar
seria lembrar que queríamos mesmo esquecer
mas a poesia foi feita para:
tratar as epifanias.
não para fazer as terapias
porque se assim fosse
ninguém quereria ouvir-me
eu teria de pagar ao público
para cuidar de mim
assim descuidam-me de outra forma
mortalizando os meus relatos
porque ao diário não deixo factos
tanto tempo levei a tentar esquecer
que agora já não consigo lembrar
sábado
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